"(...) as realidades mais óbvias, onipresentes e fundamentais são com frequência as mais difíceis de ver e conversar a respeito. Dito dessa forma, em uma frase, é claro que isso não passa de uma platitude banal, mas o fato é que nas trincheiras cotidianas da existência adulta as platitudes banais podem ter uma importância vital, ou pelo menos é o que eu gostaria de sugerir a vocês nessa manhã de tempo seco e agradável." (David Foster Wallace, "This is water", 2005)

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Borboletas e milagres

A abordagem materialista da vida tem como uma de suas consequências o maior respeito à natureza. Afinal, o especismo, tão bem combatido por Peter Singer, está calcado na mentalidade religiosa, que imagina o homem feito "à imagem e semelhança" de Deus (ou dos deuses), e portanto a "cereja no bolo" da Criação. Mas, se não somos frutos de experiências divinas, se somos o que somos graças a milhares de milênios de evolução gradual, regida por princípios naturais, a coisa muda de figura. Passamos a nos ver com mais humildade. O homem deixa de ser o "senhor" do universo, por vontade divina, e se torna parte integrante do meio. Biocentrismo: o centro é a vida. Toda a vida. O potencial humano, seu intelecto e habilidades, o tornam não superior, mas mais responsável pelas demais espécies e pelo planeta que ocupa. É antes um fardo que um privilégio "divino".

Ontem, limpando a piscina. Num trabalho de Sísifo, passava a rede para recolher o tapete de folhas que cobria a água. Alguns insetos mortos. Perto da borda, recolho o que parece ser mais uma folha, avermelhada e de manchas escuras. Vejo que a folha se agita: não é uma folha em absoluto, mas sim uma borboleta. Mexe as asas com muito esforço, como na agonia final antes da morte. Com cuidado, consigo fazer com que caia da rede para o chão. A pobre borboleta debate-se no piso, as asas delicadas encharcadas. Por quanto tempo estivera lá, afogando-se na água cheia de cloro da piscina? E agora travava uma luta pela sobrevivência. E que luta! Timidamente, as asas ganhavam movimento. As pequenas patas -não sei se se fala em "patas" no caso de borboletas- se agitavam aos poucos. Estava murcha, mas foi readquirindo a postura. As asas avermelhadas e manchadas de preto já esticadas, então altivas. E, milagre!, a borboleta alça vôo, ainda desorientada, mas já alcançando as alturas. Observei até que se perdesse de vista. Tive minha parte nisso, ao resgatá-la da água. Mas se a borboleta sobreviveu, foi por esse impulso fantástico da vida. Que não se entrega. Milagre, sim, mas da natureza.

sábado, 24 de agosto de 2013

O Velho da Casa Triste

Outra tradução. Dessa vez, dedicada a Trotsky: o poema "You Are The Old Man In The Blue House", de Kevin Higgins, membro do Permanent Revolution Readers Group no Facebook (aqui). O poema original está aqui. Como sói acontecer, minha tradução é livre, solta e inventiva.

O Velho da Casa Triste

Fazendo a si mesmo
promessas impossíveis.

Lá fora
cactos e lobos,
quando não se tem
para onde ir.

Já faz um tempão desde que carimbaram
em teu passaporte:
REJEITADO.

Ameixas cristalizadas,
em teu quinquagésimo nono aniversário,
e uma bandinha tocando.

E, enquanto isso, lá fora,
teus amigos
vão sendo
baleados na nuca.

A tempestade de agosto às portas
ecoando as palavras do Procurador Geral:
"-Abaixo com o abutre, e esses miseráveis filhos
de porcos com raposas!
"

Em tua mão,
profeta desarmado,
a pistola descarregada.

Esperas por
sabe-lá-quem
que abrace teu crânio e murmure,
"acabou".

Piedade é promessa
que não se realiza.
Ameixas cristalizadas e bandinhas tocando,
quando não se tem
para onde ir.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Quando a religião é o próprio amor

Amostra da poesia mística de Rumi, o famoso sufi persa do séc. XIII. Passei para o português a partir da versão em inglês de Shahram Shiva (que pode ser conferida, e muitas outras, aqui).

Saiba: o verdadeiro Amante
Não tem religião.
Não há crença ou descrença,
já que a religião é o próprio Amor.

Corpo, mente, coração e alma:
no Amor,
sequer existem.

Torne-se isso.
Apaixone-se.
E nunca mais
nos separaremos novamente.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Uns mais banais que os outros

Eis que as Platitudes parecem um tanto abandonadas, e com efeito ao longo de todo o mês de julho houve apenas quatro postagens, produção ínfima para quem queria escrever em várias doses diárias. É que a vida atropela os planos. Além da falta de tempo habitual, as redes sociais, notadamente o Facebook, acabam servindo, elas próprias, de veículo para essas platitudes. O "senão" é que, se em um blog a "perenidade" de algo -seja um comentário, reflexão ou crítica- é relativizada, pela própria natureza da ferramenta, diferentemente de um site propriamente dito ou de um trabalho publicado, no Facebook tudo é ainda muito mais efêmero. Os melhores posts (e não quero dizer que seja eu a produzi-los, longe disso) são soterrados, em questão de segundos, pela pletora de imagens fofinhas e mensagens religiosas de autoajuda que reinam em nossas timelines. O grosso do Facebook consegue ser mais banal que nossas platitudes.