"(...) as realidades mais óbvias, onipresentes e fundamentais são com frequência as mais difíceis de ver e conversar a respeito. Dito dessa forma, em uma frase, é claro que isso não passa de uma platitude banal, mas o fato é que nas trincheiras cotidianas da existência adulta as platitudes banais podem ter uma importância vital, ou pelo menos é o que eu gostaria de sugerir a vocês nessa manhã de tempo seco e agradável." (David Foster Wallace, "This is water", 2005)

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Socialismo nas estrelas

Posadas, neste link, com seu socialismo intergaláctico. Levanta a possibilidade, que crê ser concreta, de existência de seres extraplanetários, visitando-nos em seus discos voadores. Apesar de testemunhos visuais, tais visitas são mantidas em segredo pelos Estados capitalistas, que não têm nada a ganhar com a divulgação da vida extraterrena, e pelas burocracias dos Estados Operários, igualmente sem interesse em tal divulgação e o consequente terremoto social que o contato com civilizações alienígenas traria.

O texto, diga-se com justiça, não pretende, e nem poderia, adotar um ar "científico"; as questões são colocadas em aberto, apesar da convicção de sua certeza. Acerta, claramente, quando aponta o parco conhecimento da matéria que os humanos temos, a submissão da ciência aos interesses econômicos e o fato, que acaba por ser óbvio, da superioridade científica de eventual cultura extraterrena sobre a nossa. Nesse sentido, o contato com tais povos, para a Humanidade, resultaria num progresso inaudito. Concordo com esse progresso; penso, todavia, que a emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores e não há que se esperar soluções caindo, literalmente, do céu.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

A polícia que não tem "curiosidade"

A polícia brasileira tem um jeito curioso de "investigar". Primeiro escolhe a versão e, uma vez escolhida, passa-se a colher provas que lhe sirvam. Isso fica claro em episódios recentes da crônica policial. Por exemplo, nos casos da família Pesseghini e do jovem Kaique. Não há cautela, não há reservas, não há cuidado- a polícia dá logo o "diganóstico" (-foi isso!, -foi aquilo!), e então se vai buscar provas que fundamentem a versão.

Exagero? Os ingênuos que leiam esta entrevista, na qual agente da polícia federal deixa claro que "(...) a necessidade de você obter uma informação é até você obter o que você quer. O que eu quero? Provar nosso ponto perante a justiça, curiosidade é coisa de menino".

Essa é a polícia no Brasil. Colhendo informações até provar o ponto "dela". O resto é "curiosidade de menino". Felizmente o inquérito policial "não é indispensável à propositura de ação penal, podendo a acusação formar seu convencimento a partir de quaisquer outros elementos informativos" (Eugênio Pacelli, "Curso de Processo Penal"), o que, em verdade, mostra o quanto uma polícia parcial e obtusa é, ela própria, dispensável.

Fica aqui para esses "investigadores" -os de boa-fé, ao menos- a lição de Conan Doyle, pela boca de Sherlock Holmes:

É um erro capital teorizar antes de se ter os dados. Invariavel­mente começamos a torcer os fatos para se ajustarem à teoria, em vez de ser a teoria a ajustar-se aos fatos.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Divino Van Gogh

De Manoel de Barros (vi aqui):

Um girassol se apropriou de Deus: foi
em
Van Gogh.

Henry Miller já associara Van Gogh à divindade (aqui, no velho blog). Associemos de novo, nunca é demais.

domingo, 27 de outubro de 2013

Dia da caça, dia do caçador

Uma coisa deve ser dita: COM CERTEZA, mas com absoluta certeza, o coronel da PM paulista agredido na manifestação de massas do dia 25/ 10 (aqui) fez, ao longo de sua carreira policial, a MESMA coisa com muita gente. Principalmente, podemos dizer, e também com certeza, contra jovens negros proletários das periferias. E, ainda por cima, com o amparo do Estado burguês, do qual é o braço armado.

Provou do próprio veneno.

Mas suponhamos que o coronel Rossi seja um policial militar exemplar, que jamais em toda sua trajetória abusou de sua autoridade contra a população pobre. Ainda assim há que perguntar o porquê de ter sido quase linchado. Não é por ser apenas um agente estatal. Os manifestantes não fariam isso com, por exemplo, os professores da rede pública; ao contrário, aqui no Rio de Janeiro os setores mais radicalizados, os "vândalos" da Rede Globo, cantavam "o professor é meu amigo, mexeu com ele mexeu comigo". Não fariam isso com a Defensoria Pública, por exemplo, e o prédio do Tribunal de Justiça, aqui no Centro do Rio, apesar de estar no trajeto rumo à Alerj, tem passado incólume durante as manifestações. A Polícia, não; a Polícia é odiada. Todos querem a chance de dar um chute, uma porrada, uma pedrada na Polícia. Desperta o ódio instintivo- e é um ódio merecido. A juventude negra proletária da periferia pode confirmar isso.

É preciso ter algumas coisas em mente. A polícia é o cão de guarda do sistema, e não basta trocá-la por outra; o sistema arranjará novos guarda-costas. O verdadeiro inimigo, pois, é o sistema, e não seus paus-mandados (os policiais infiltrados nas assembleias dos professores da rede pública têm sido enxotados aos gritos de "cachorrinhos do Cabral"). Nesse sentido, como marxistas, somos contra o terrorismo individual. Porque a "conta que nos deve pagar o sistema capitalista é demasiado elevada para ser apresentada a um funcionário chamado ministro", ou, aqui, a um coronel da PM.

Não adianta muito, portanto, agredir um coronel da PM. Mas, ao contrário de Dilma (aqui), a mesma Dilma que convoca a Força Nacional para garantir o criminoso leilão do Campo de Libra, não temos nenhuma solidariedade para com o coronel Rossi. Muito pelo contrário, a nossa solidariedade é para com a juventude negra proletária da periferia, as vítimas do sistema que o coronel Rossi e sua polícia representam.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Borboletas e milagres

A abordagem materialista da vida tem como uma de suas consequências o maior respeito à natureza. Afinal, o especismo, tão bem combatido por Peter Singer, está calcado na mentalidade religiosa, que imagina o homem feito "à imagem e semelhança" de Deus (ou dos deuses), e portanto a "cereja no bolo" da Criação. Mas, se não somos frutos de experiências divinas, se somos o que somos graças a milhares de milênios de evolução gradual, regida por princípios naturais, a coisa muda de figura. Passamos a nos ver com mais humildade. O homem deixa de ser o "senhor" do universo, por vontade divina, e se torna parte integrante do meio. Biocentrismo: o centro é a vida. Toda a vida. O potencial humano, seu intelecto e habilidades, o tornam não superior, mas mais responsável pelas demais espécies e pelo planeta que ocupa. É antes um fardo que um privilégio "divino".

Ontem, limpando a piscina. Num trabalho de Sísifo, passava a rede para recolher o tapete de folhas que cobria a água. Alguns insetos mortos. Perto da borda, recolho o que parece ser mais uma folha, avermelhada e de manchas escuras. Vejo que a folha se agita: não é uma folha em absoluto, mas sim uma borboleta. Mexe as asas com muito esforço, como na agonia final antes da morte. Com cuidado, consigo fazer com que caia da rede para o chão. A pobre borboleta debate-se no piso, as asas delicadas encharcadas. Por quanto tempo estivera lá, afogando-se na água cheia de cloro da piscina? E agora travava uma luta pela sobrevivência. E que luta! Timidamente, as asas ganhavam movimento. As pequenas patas -não sei se se fala em "patas" no caso de borboletas- se agitavam aos poucos. Estava murcha, mas foi readquirindo a postura. As asas avermelhadas e manchadas de preto já esticadas, então altivas. E, milagre!, a borboleta alça vôo, ainda desorientada, mas já alcançando as alturas. Observei até que se perdesse de vista. Tive minha parte nisso, ao resgatá-la da água. Mas se a borboleta sobreviveu, foi por esse impulso fantástico da vida. Que não se entrega. Milagre, sim, mas da natureza.

sábado, 24 de agosto de 2013

O Velho da Casa Triste

Outra tradução. Dessa vez, dedicada a Trotsky: o poema "You Are The Old Man In The Blue House", de Kevin Higgins, membro do Permanent Revolution Readers Group no Facebook (aqui). O poema original está aqui. Como sói acontecer, minha tradução é livre, solta e inventiva.

O Velho da Casa Triste

Fazendo a si mesmo
promessas impossíveis.

Lá fora
cactos e lobos,
quando não se tem
para onde ir.

Já faz um tempão desde que carimbaram
em teu passaporte:
REJEITADO.

Ameixas cristalizadas,
em teu quinquagésimo nono aniversário,
e uma bandinha tocando.

E, enquanto isso, lá fora,
teus amigos
vão sendo
baleados na nuca.

A tempestade de agosto às portas
ecoando as palavras do Procurador Geral:
"-Abaixo com o abutre, e esses miseráveis filhos
de porcos com raposas!
"

Em tua mão,
profeta desarmado,
a pistola descarregada.

Esperas por
sabe-lá-quem
que abrace teu crânio e murmure,
"acabou".

Piedade é promessa
que não se realiza.
Ameixas cristalizadas e bandinhas tocando,
quando não se tem
para onde ir.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Quando a religião é o próprio amor

Amostra da poesia mística de Rumi, o famoso sufi persa do séc. XIII. Passei para o português a partir da versão em inglês de Shahram Shiva (que pode ser conferida, e muitas outras, aqui).

Saiba: o verdadeiro Amante
Não tem religião.
Não há crença ou descrença,
já que a religião é o próprio Amor.

Corpo, mente, coração e alma:
no Amor,
sequer existem.

Torne-se isso.
Apaixone-se.
E nunca mais
nos separaremos novamente.