"(...) as realidades mais óbvias, onipresentes e fundamentais são com frequência as mais difíceis de ver e conversar a respeito. Dito dessa forma, em uma frase, é claro que isso não passa de uma platitude banal, mas o fato é que nas trincheiras cotidianas da existência adulta as platitudes banais podem ter uma importância vital, ou pelo menos é o que eu gostaria de sugerir a vocês nessa manhã de tempo seco e agradável." (David Foster Wallace, "This is water", 2005)

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Amarga constatação

Eleições domingo, e a desalentadora notícia de que os mais reacionários estão dentre os mais lembrados para a Câmara. A fascistização está no ar: a esquerda e movimentos sociais atacados nas "jornadas de junho" de 2013, candidatos a presidente -reparem, o cargo máximo da República- vociferando os discursos mais homofóbicos e atrasados. Enquanto isso, o famigerado art. 46 da lei 9.504 retira o direito de partidos como o PCB, PSTU e PCO participarem dos debates televisivos.

O brasileiro é conservador, e isso é evidente. A imagem de tolerância, carnavalesca, do povo receptivo e solidário é apenas um estereótipo. O trombadinha é espancado por "populares" na Rua do Rosário, sob a janela do meu escritório, e todos param para ver e aplaudir; alguns para aproveitar e dar uma porradinha também, é claro, e todos saem satisfeitos com a justiça feita. Afinal, se as autoridades nada fazem, "nós" faremos; mas o afã "justiçador" tem por alvo o trombadinha descalço e esquálido, enquanto o megaempresário passa incólume, aliás, o que um homem de bem poderia fazer de mal? Porrada no menino negro, loas ao engravatado de olhos azuis.

O relógio roubado pelo trombadinha: cem reais, digamos. O prejuízo causado pelo empresário: quase um bilhão e meio de reais. Mas o ódio "justiçador" da turba é seletivo. O fascismo ganha as massas. Eleições domingo, e quem viver verá.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Dançar é preciso, viver não é preciso

O clérigo xiita kuwaitiano Yasser Habib, à pergunta se é ilícito cantar ou tocar música:

Singing as well as playing music is a trap of Shaytan and a window through which he can get access to his soul and heart and lead him to desire, both of which are forbidden.

Uma interpretação que não fala pela religião inteira, evidentemente, mas que interpretação! Evoca um cenário desolado e sombrio. Eu penso justamente o contrário- a música é estar em contato com a divindade e, como diz Garaudy, toda tentativa de falar com Deus (theo, logos) é poética, do Ramayana aos poemas de São João da Cruz.

"Se eu não posso dançar não é minha revolução" (If I can't dance I don't want to be in your revolution), diz a frase supostamente atribuída a Emma Goldman. É isso mesmo: dançar é direito inalienável, e revoluções e religiões sem dança são coisas muito chatas.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

“Concurso público é uma máquina de injustiça social”

Na mosca:

O concurso público hoje é uma máquina de exclusão social, e não de inclusão. Esse sistema é voltado para quem tem tempo e dinheiro para pagar um bom cursinho. Pra quem pode pagar um bom colégio, que já no ensino médio ministra disciplinas para preparar o seu filho para os concursos da administração pública. Esse é um dos reflexos perversos da ideologia concurseira. Pra fazer cursinho, você precisa ter tempo. E ter tempo é poder não trabalhar.

Íntegra aqui.

Coincidentemente, o post da última sexta no Nova Dialética cita a deficiência dos concursos públicos no Brasil: um festival de pegadinhas e "macetes", enriquecendo cursinhos e enchendo o ego de membros de bancas.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

O Califado a soldo dos ianques

Soldados nigerianos, em debandada, fugindo do Boko Haram, exércitos do Iraque e Síria sendo esmagados pelo ISIS. Ou as tropas regulares desses países vivem um estado de caos e despreparo -o que poderia ser o caso iraquiano e sírio, sob intervenção armada estrangeira e guerra civil há anos- ou os jihadistas têm uma força inaudita.

Coloquemos a questão nestes termos: de onde vem essa força? Há tentativas de explicar a origem dos financiamentos ao ISIS. É complexo, como se vê, mas em minha opinião há algo aí; algo de podre no Califado, se me permite Hamlet. Os indícios se acumulam: as atrocidades cometidas em nome do Islã (e assim sujando sua imagem aos olhos da comunidade internacional), o ódio à resistência palestina, os massacres de xiitas- isto é, de apoiadores do Irã e de Assad, regimes inimigos dos EUA e de Israel... Quem quer que se detenha na geografia da região verá o rápido avanço dos jihadistas. Um Califado extremista às portas não deve ser o cenário de sonho de Israel. Mas, porventura, o sionismo tem se movimentado?

Sim, tem se movimentado e, é essa minha leitura, se movimentado justamente para garantir os êxitos do ISIS. O inimigo de meu inimigo é meu amigo, diz o velho bordão, e só por ameaçar Assad e o Irã o Califado merece o apoio ianque-sionista. Negarão, é verdade, e soltarão bravatas. Quem não conhece o jogo sujo dos ianques que se deixe enganar.

A tese do apoio tático contra um inimigo em comum é plausível. Mas as coisas podem ser ainda mais sinistras: o movimento pode estar totalmente, absolutamente, submetido aos interesses ianque-sionistas, desde o nascedouro. Não falo acima na ojeriza ao Islã que os jihadistas têm criado aos olhos do público? De como odeiam a resistência palestina? Isso tudo pode obedecer a uma lógica maior. Como, por exemplo, nos anos de chumbo delitos eram cometidos para se acusar os comunistas- e assim lhes tirar o apoio popular. A hipótese também é plausível e, de novo, quem não conhece o jogo sujo dos ianques que se deixe enganar.

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Post scriptum (20/ 09/ 14): neste link, hipóteses para explicar os êxitos do ISIS sobre o exército regular iraquiano.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Lassalle e a essência da constituição

Lassalle, reformista, sem dúvidas. Mas Lassalle morrendo em duelo; romantismo vetado em nossos tempos mais civilizados, mas isso é singular, isso é interessante.

E o seu livrinho também é interessante:

Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas do poder.

Infelizmente, seu estudo no Direito Constitucional tem sido menosprezado. Indico a edição da Lumen Juris, com prefácio de Aurélio Wander Bastos. Vale comprar, baratinho, não dá 50 páginas.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

O Corão e o problema da literalidade

O Islã acusado de violento e agressivo. Mas veja-se a 2ª Surata, "Al Bácara" ("a vaca"):

190. Combatei, pela causa de Deus, aqueles que vos combatem; porém, não pratiqueis agressão, porque Deus não estima os agressores.

191. Matai-os onde quer que os encontreis e expulsai-os de onde vos expulsaram, porque a perseguição é mais grave do que o homicídio. Não os combatais nas cercanias da Mesquita Sagrada, a menos que vos ataquem. Mas, se ali vos combaterem, matai-os. Tal será o castigo dos incrédulos.

192. Porém, se desistirem, sabei que Deus é Indulgente, Misericordiosíssimo.

193. E combatei-os até terminar a perseguição e prevalecer a religião de Deus. Porém, se desistirem, não haverá mais hostilidades, senão contra os iníquos.

É claramente uma postura de autodefesa.

Claro, a morte de inimigos pode chocar nossa mente civilizada do séc. XXI, mas o comando corânico deve ser interpretado dentro de seu contexto histórico-material. E, modernamente, interpretado do ponto de vista do simbólico e do figurado; o bom combate não se dá necessariamente de armas na mão.

A literalidade é um problema. O texto escrito nem sempre dá conta de toda a questão. É por isso que, em Direito, sou pós-positivista: lei escrita mas cotejada com algo maior. O fundamentalista -islâmico ou jurídico- quer o ipsis litteris mas, vejam só, "a" pode ser lido como "a" ou como "a"- no fim das contas o que existe são interpretações pessoais.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

"O califa tá de olho no decote dela"

O ISIS, que se pretende o Califado Mundial, fundamentalista que só ele, vilipendiando a bandeira da Palestina (aqui). Não reconhece a legitimidade do Hamas: por lutar por independência nacional -e não pela expansão do Islã- e, sendo sunita, ter apoio dos xiitas do Hezbollah e do Irã, o Hamas é considerado "apóstata". Portanto, para o ISIS, antes de combater o sionismo é preciso combater... o Hamas. E não só ele, é preciso expurgar todo o mundo islâmico antes de empreender a jihad contra os não-islâmicos.

O típico integrismo citado por Garaudy, a pretensão de possuir a verdade absoluta. E a visão binária! Imaginemos que, antes de empreender a revolução contra o capital, os comunistas se matem entre si para "depurar" o movimento comunista. A quem interessa a luta fratricida? Não por acaso há quem considere o ISIS, com seu radicalismo e tudo, um agente do enclave ianque-sionista.

(O título do post? Deste clássico aqui.)